Médium bretão
Extrato dos Manuscritos de um Jovem Médium Bretão
ALUCINADOS, INSPIRADOS, FLUÍDICOS E SONÂMBULOS

Nossos leitores se lembram de ter lido, em junho de 1867, a análise do Romance do Futuro, que o Sr. Bonnemère havia tirado dos manuscritos de um jovem médium bretão, cujos trabalhos lhe havia confiado.

É ainda nessa volumosa coletânea de manuscritos que o autor encontrou estas páginas, escritas em hora de inspiração, e que vem submeter à apreciação dos leitores da Revista Espírita. Desnecessário dizer que deixamos ao médium, ou antes, ao Espírito que o inspira, a responsabilidade das opiniões que emite, reservando-nos para as apreciar mais tarde. Do mesmo modo que o Romance do Futuro, é um curioso espécime de mediunidade inconsciente.

I

OS ALUCINADOS

Temos pouco a dizer sobre a alucinação, estado provocado por uma causa moral, que influi sobre o físico e à qual se mostram mais acessíveis as naturezas nervosas, sempre mais prontas a impressionar-se.

Sobretudo as mulheres, por sua organização íntima, são levadas à exaltação, e a febre se apresenta nelas, o mais das vezes, acompanhada de delírio, que toma as aparências da loucura momentânea.

A alucinação, é preciso reconhecer, por um pequeno lado toca a loucura, assim como todas as superexcitações cerebrais; e enquanto o delírio se manifesta sobretudo por palavras incoerentes, a alucinação representa mais particularmente a ação, a encenação. Contudo, é injustamente que por vezes as confundem.

Vítima de uma espécie de febre interior, que não se traduz externamente por nenhuma perturbação aparente dos órgãos, o alucinado vive em meio ao mundo imaginário que cria, por um momento, sua imaginação perturbada; tudo está em desordem, nele como em torno dele; leva tudo ao extremo: por vezes a alegria, a tristeza quase sempre, e as lágrimas rolam nos olhos, enquanto seus lábios fingem um sorriso doentio.

Essas visões fantásticas existem para ele; ele as vê, as toca e se assusta com elas. Não obstante, conserva o exercício da vontade; conversa com os interlocutores e lhes oculta o objeto de seus terrores ou de suas sombrias preocupações.

Conhecemos um que, durante cerca de seis meses, assistia todas as manhãs ao enterro de seu corpo, tendo plena consciência de que sua alma sobrevivia. Nada parecia mudado nos seus hábitos de vida e, contudo, esse pensamento incessante, essa visão mesma por vezes o seguia em todos os lugares. A palavra morte ressoava incessantemente em seu ouvido. Quando o Sol brilhava, dissipava a noite ou atravessava a nuvem, a horrível visão se desvanecia pouco a pouco, acabando por desaparecer. À noite adormecia, triste e desesperado, porque sabia que horrível despertar o aguardava no dia seguinte.

Por vezes, quando o excesso de sofrimento físico impunha silêncio à sua vontade e lhe tirava esse poder de dissimulação, que de ordinário conservava, exclamava de repente: – Ah! ei-los!... eu os vejo!... E então descrevia aos que o cercavam com mais intimidade os detalhes da lúgubre cerimônia, relatava as cenas sinistras que se desdobravam aos seus olhos, ou rondas de personagens fantásticas que desfilavam à sua frente.

O alucinado vos dirá as loucas percepções de seu cérebro doente, mas não tem nada a vos repetir do que outros viessem lhe revelar; porque, para ser inspirado, é preciso que a paz e a harmonia reinem em vossa alma, e que estejais isento de todo pensamento material ou mesquinho; algumas vezes a disposição doentia provoca a inspiração; é, então, como um socorro que os amigos partidos antes vêm vos trazer para vos aliviar.

Esse louco, que ontem gozava da plenitude da razão, não apresenta desordens exteriores perceptíveis ao olho do observador; são, entretanto, numerosas, existem e são reais. Muitas vezes o mal está na alma, lançada fora de si mesma pelo excesso de trabalho, de alegria, de dor; o homem físico não está mais em equilíbrio com o homem moral; o choque moral foi mais violento do que o físico pode suportar: daí o cataclismo.

O alucinado sofre igualmente as conseqüências de uma perturbação grave em seu organismo nervoso. Mas – o que raramente acontece na loucura – neles essas desordens são intermitentes e tão mais facilmente curáveis quanto sua vida é, de certo modo, dupla, pois pensa com a vida real e sonha com a vida fantástica.

Esta última é, por vezes, o despertar de sua alma doente e, se se o escutar com inteligência, chegar-se-á a descobrir a causa do mal, que muitas vezes ele quer ocultar. Entre o fluxo das palavras incoerentes, que lança fora uma pessoa em delírio, e que parecem em nada se referir às causas prováveis de sua doença, encontrar-se-á uma que voltará sem cessar, que ela queria reter e que, contudo, escapa. Essa é a verdadeira causa e que é preciso combater.

Mas o trabalho é longo e difícil, porque o alucinado é um hábil comediante e, se percebe que o observam, seu espírito se lança em estranhos desvios e toma as aparências da loucura para escapar a essa pressão importante, que pareceis decidido a exercer sobre ele. É, pois, necessário estudá-lo com extremo tato, sem jamais o contradizer ou tentar retificar os erros de seu cérebro em delírio.

São estas as diversas fases de excitações cerebrais, ou antes, de excitações do ser todo inteiro, pois não é preciso localizar a sede da inteligência. A alma humana, que a dá, plana por toda parte; é o sopro do alto, que faz vibrar e agir a máquina toda inteira.

O alucinado pode, de boa-fé, julgar-se inspirado e profetizar, quer tenha consciência do que diz, quer os que o rodeiam possam, só eles e mau grado seu, recolher suas palavras. Mas dar fé às indicações de um alucinado seria se preparar estranhas decepções, e é assim que muitas vezes têm levado ao passivo da inspiração os erros que não eram senão o fruto da alucinação.

O físico é coisa material, sensível, exposta à luz, que cada um pode ver, admirar, criticar, cuidar ou tentar endireitar. Mas quem pode conhecer o homem moral? Quando nos ignoramos a nós mesmos, como nos julgarão os outros? Se nós lhes entregamos alguns dos nossos pensamentos, são muito mais ainda os que subtraímos aos seus olhares e que gostaríamos de ocultar a nós mesmos.

Essa dissimulação é quase um crime social. Criados para o progresso, nossa alma, nosso coração, nossa inteligência são feitos para se derramarem sobre todos os irmãos da grande família, para lhes prodigalizar tudo quanto está em nós, como para se enriquecer ao mesmo tempo com tudo o que nos podem comunicar.

A expansão recíproca é, pois, a grande lei humanitária, e a concentração, isto é, a dissimulação de nossas ações, de nossos pensamentos, de nossas aspirações é uma espécie de roubo que cometemos em prejuízo de todo o mundo. Que progresso se fará, se guardarmos em nós tudo o que a Natureza e a educação aí puseram, e se cada um agir do mesmo modo a nosso respeito?

Exilados voluntários e nos mantendo fora do comércio de nossos irmãos, nós nos concentramos numa idéia fixa; a imaginação obsedada procura a isto subtrair-se, perseguindo toda sorte de pensamentos inconseqüentes, e assim se pode chegar até a loucura, justo castigo que nos é infligido por não termos querido marchar em nossas vias naturais.

Vivamos, pois, nos outros e eles em nós, a fim de que todos não sejamos senão um. As grandes alegrias, como as grandes dores, nos partem quando não são confiadas a um amigo. Toda solidão é má e condenada, e toda coisa contrária ao voto da Natureza traz como conseqüências inevitáveis imensas desordens interiores.

II

OS INSPIRADOS

A inspiração é mais rara que a alucinação, porque não se prende somente ao estado físico, mas, ainda e sobretudo, à situação moral do indivíduo predisposto a recebê-la.

Todo homem não dispõe senão de certa quota de inteligência, que lhe é dado desenvolver por seu trabalho. Chegado ao ponto culminante que lhe é concedido atingir, pára um momento, depois retorna ao estado primitivo, ao estado de infância, menos essa mesma inteligência, que em um cresce dia a dia, e no velho diminui, extingue-se e desaparece. Então, tendo dado tudo, e nada mais podendo acrescentar à bagagem de seu século, ele parte, mas para ir continuar alhures sua obra interrompida neste mundo; parte, mas deixando o lugar rejuvenescido para um outro que, chegando à idade viril, terá o poder de, por sua vez, realizar uma missão maior e mais útil.

O que chamamos a morte não é senão o devotamento ao progresso e à Humanidade. Mas nada morre, tudo sobrevive e se reencontra pela transmissão do pensamento dos seres partidos antes, que têm ainda, pela parte mais etérea de si mesmos, na pátria deixada, mas não esquecida, que amam sempre, pois é habitada pelos continuadores de sua vida, pelos herdeiros de suas idéias, aos quais se comprazem em insuflar por momentos as que não tiveram tempo de semear em seu redor, ou que não puderam ver progredir ao sabor de suas esperanças.

Não tendo mais órgãos ao serviço de sua inteligência, vêm pedir aos homens de boa vontade, que apreciam, que lhes cedam o lugar por um momento. Sublimes benfeitores ocultos, impregnam seus irmãos da quintessência de seu pensamento, a fim de que sua obra esboçada continue e se conclua, passando pelo cérebro dos que podem fazê-la realizar seu caminho no mundo.

Entre os amigos desaparecidos e nós, o amor continua, e o amor é a vida. Eles nos falam com a voz de nossa consciência posta em vigília. Purificados e melhores, não nos trazem senão coisas puras, isentos que estão de toda parte material, como de todas as mesquinharias de nossa pobre existência. Eles nos inspiram no sentimento que tinham neste mundo, mas nesse sentimento desprendido de toda mistura.

Resta-lhes ainda uma parte de si mesmos para dar: eles no-la trazem, deixando-nos crer que a obtivemos apenas por nosso trabalho pessoal. Daí essas revelações inesperadas, que confundem a Ciência. O Espírito de Deus sopra onde quer... Desconhecidos fazem grandes descobertas, e o mundo oficial das academias aí está para lhes entravar a passagem.

Não pretendemos dizer que, para ser inspirado, seja indispensável manter-se incessantemente nos estreitos caminhos do bem e da virtude; entretanto, de ordinário são seres morais aos quais se vem, muitas vezes como compensação dos males que sofrem por causa dos outros, conceder manifestações que lhes permitem vingar-se à sua maneira, trazendo o tributo de alguns benefícios à Humanidade, que os desconhece, zomba e calunia.

Encontram-se tantas categorias de inspirações e, por conseguinte, de inspirados, quantas faculdades existem no cérebro humano para assimilar conhecimentos diferentes.

A luta assusta os Espíritos depurados, partidos para mundos mais adiantados, e que desejam que os escutem com docilidade. Por isso os inspirados são geralmente seres puros, ingênuos e simples, sérios e refletidos, cheios de abnegação e de devotamento, sem personalidade marcante, de impressões profundas e duráveis, acessíveis às influências exteriores, sem idéias preconcebidas sobre as coisas que ignoram, bastante inteligentes para assimilar os pensamentos alheios, mas não moralmente bastante fortes para os discutir.

Se o inspirado se apega às suas próprias convicções, de boa-fé toma o seu eco pela advertência das vozes que nele falam e, também de boa-fé, engana, em vez de esclarecer. A bondade preside a essas revelações, que jamais ocorrem senão com um objetivo útil e moral, ao mesmo tempo.

Quando uma dessas organizações simpáticas é sofredora, devido a uma decepção cruel, ou a um mal físico, um amigo por ela se interessa e vem, dando outro alimento ao seu pensamento, trazer alívio para ela própria, mas, sobretudo, para os que lhe são caros.

Não é raro que o inspirado tenha começado sendo um alucinado. É como um noviciado, uma preparação de seu cérebro para concentrar seu espírito e poder aceitar aquilo que lhe dirão.

Porque um inspirado nada pode formular de concludente em dado momento, não significa que não o possa fazer em outros. As manifestações ficam livres, espontâneas; vêm quando são necessárias. Por isso os inspirados, mesmo os melhores, não o são em dia e hora fixos, e as sessões anunciadas previamente muitas vezes preparam inevitáveis decepções.

Fazendo evocações muito freqüentes, corre-se o risco de não se chegar senão a um estado de superexcitação, mais vizinho da alucinação que da inspiração. Então não passam de jogos de nossa imaginação em delírio, em vez dessas luzes do outro mundo, destinadas a iluminar os passos da Humanidade em sua estrada providencial.

Isto explica esses erros, dos quais a incredulidade fez uma arma, para negar, de maneira absoluta, a intervenção dos Espíritos superiores.

Os inspirados o são por todos os que, partidos antes da hora, têm algo para nos ensinar.

Pode acontecer que a mulher mais simples, a menos instruída, tenha revelações médicas. Vimos uma que, mesmo sem saber ler e escrever, achava em si diversos nomes de plantas que podiam curar. A credulidade popular quase a tinha forçado a
explorar essa faculdade. Mas, nem sempre era igualmente bem esclarecida, mesmo tomando o pulso da pessoa doente, que com ela se punha em relação; porque ela era também desses fluídicos, dos quais falaremos daqui a pouco. Embora fraca e delicada, podia, por seu contato, restabelecer o equilíbrio em quem o necessitava e repor em circulação os princípios vitais interrompidos. Sem se dar conta disto, muitas vezes fazia, pelo simples toque, em certas pessoas cujo fluido era idêntico ao seu, mais bem que os remédios que prescrevia, às vezes, apenas por hábito, e com variantes insignificantes, fosse qual fosse o mal para o qual a consultavam.

A Providência colocou junto de cada homem um remédio para cada doença. Apenas existem tantas naturezas diferentes quantos indivíduos. Os remédios também agem diferentemente sobre cada organismo, o qual influi sobre os caracteres do mal; e é isto que faz que seja quase impossível ao médico prescrever o remédio eficaz. Ele conhece os seus efeitos gerais, mas ignora absolutamente em que sentido agirá sobre tal paciente que lhe apresentam.

É aqui que brilha a superioridade dos fluídicos e dos sonâmbulos, porque, quando eles se encontram em certas condições de simpatia com os que vêm consultá-los, os seres superiores os guiam com uma quase certa infalibilidade.

Muitas vezes essa inspiração é inconsciente de si mesma; às vezes um médico, mas apenas junto de certos doentes, acha de súbito o remédio que os pode curar. Não foi a Ciência que o guiou, foi a inspiração. A Ciência punha à sua disposição vários modos de tratamento, mas uma voz interior lhe gritava um nome; foi forçado a dizê-lo, e esse nome era o do remédio que devia agir, com exclusão de qualquer outro.

O que dizemos da Medicina existe, da mesma maneira, em todos os outros ramos do trabalho humano. Em certas horas, o fogo da inspiração nos devora; há que ceder. E se pretendemos concentrar em nós mesmos o que de nós deve sair, um verdadeiro sofrimento se torna o castigo de nossa revolta.

Todos aqueles a quem Deus concedeu o dom sublime de criação, os poetas, os sábios, os artistas, os inventores, todos têm essas iluminações inesperadas, por vezes numa ordem de fatos muito diferentes de seus estudos ordinários, caso se tivesse pretendido violentar a sua vocação. Mas os Espíritos sabem o que devemos e podemos fazer, e vêm despertar incessantemente em nós as nossas atrações abafadas.

Sabe-se como Molière explicava essas desigualdades que desfiguram as mais belas peças de Corneille. “Esse diabo do homem, dizia ele, tem um gênio familiar, que vem por momentos soprar-lhe ao ouvido coisas sublimes; depois, de repente planta-o lá, dizendo-lhe: ‘Sai desta como puderes!’ E então não faz mais nada que valha.” Molière estava certo. O orgulhoso gênio de Corneille não tinha a dócil passividade necessária para suportar toda a inspiração do alto. Os Espíritos o abandonavam, e então ele adormecia, como por vezes fazia o próprio Homero.

Há os que escutam vozes interiores, que neles falam; Sócrates e Joana d’Arc eram destes. Outros nada escutam, mas são constrangidos a obedecer a uma força vitoriosa, que os domina.

Outras vezes, um nome vem ferir o ouvido do inspirado: é o de um amigo, de um indivíduo que nem mesmo conhece, do qual apenas ouviu falar. A personalidade desse amigo desconhecido o penetra, nele se infunde; pouco a pouco pensamentos estranhos vêm substituir os seus. Por um momento tem o espírito daquele; obedece, escreve, sem saber, mau grado seu, se necessário, coisas que não sabe. E como essa obediência passiva, ao qual foi condenado, lhe é difícil de suportar em estado de vigília, foge dessas coisas escritas sob uma inspiração opressiva, e não as quer ler.

Esses pensamentos podem estar em desacordo formal com suas crenças, com seus sentimentos, ou antes, com aqueles que a educação lhe impôs, porque, para que certos Espíritos venham a ele, é preciso que exista alguma relação entre eles. Dão-lhe o pensamento, deixando-lhe o cuidado de achar a forma. É preciso, pois, que saibam que sua inteligência os pode compreender e assimilar momentaneamente suas idéias, para as traduzir.

É raro que as circunstâncias tenham permitido que nos desenvolvamos no sentido de nossas aptidões inatas. Os Espíritos mais adiantados sabem que corda é preciso tocar, para que esta entre em vibração. Ela havia ficado muda, porque tinham atacado outras, desprezando aquela. Por um momento eles lhe dão a vida.
É um germe por muito tempo abafado, que eles fecundam. Depois o inspirado, voltando ao seu estado habitual, não se lembra mais, pois vive uma existência dupla, cada uma das quais independe da outra.

Entretanto, acontece também que conserve uma maior facilidade de compreensão, e conquiste um maior desenvolvimento intelectual. É a recompensa do esforço que fez, para dar uma forma compreensível aos pensamentos que outros vieram lhe revelar.

Não acreditamos que todo inspirado possa conhecer tudo. Cada um, conforme suas predisposições naturais, muitas vezes mantidas com desconhecimento dele próprio e dos outros, é inspirado por tal ou qual coisa, mas não o é igualmente por todas. Com efeito, existem naturezas de tal modo antipáticas a certos conhecimentos, que os Espíritos não virão jamais bater numa porta que sabem não poder abrir.

Só em certa medida o futuro é conhecido pelos inspirados. Assim, não é certo dizer que um inspirado predisse para que mundo tal pessoa irá após a morte, e que julgamento Deus pronunciará contra ela. Isto é um jogo de imaginação alucinada. Por mais alto que o homem tenha subido na escala dos mundos, não conhece qual será o destino de seu irmão. É a parte reservada a Deus: jamais a criatura poderá usurpar os seus direitos.

Sim, há manifestações, mas não são contínuas, e nossa impaciência a seu respeito muitas vezes é condenável.

Sim, tudo se mantém e nada se rompe no imenso Universo. Sim, existe entre esta existência e as outras um laço simpático e indissolúvel, que liga e une uns aos outros todos os membros da família humana, e que permite aos melhores vir nos dar o conhecimento do que não sabemos. É por esse trabalho que se realiza o progresso; quer se chame trabalho da inteligência ou da inspiração, é a mesma coisa. A inspiração é o progresso superior, é o fundo: o trabalho pessoal aí põe a forma, juntando ainda a quintessência dos conhecimentos anteriormente adquiridos.

Nenhuma invenção nos pertence particularmente, porque outros lançaram antes a semente que recolhemos. Aplicamos à obra que queremos perseguir as forças e o trabalho da Natureza, que é de todos, e sem o auxílio da qual nada se faz, depois as forças e o trabalho acumulados por aqueles que nos prepararam os meios de triunfar.

A bem dizer, tudo é obra comum e coletiva, para confirmar ainda esse grande princípio de solidariedade e de associação, que é a base das sociedades e da lei de toda Criação.

O trabalho do homem jamais será tornado inútil pela inspiração. O Espírito que no-lo vem trazer respeitará sempre esta parte reservada ao indivíduo; ele a respeitará como uma coisa nobre e santa, pois o trabalho põe o homem na posse das faculdades que Deus depositou em germe em sua alma, a fim de que o objetivo de sua vida fosse de as fecundar. É por seu desenvolvimento que bem aprendeu a conhecer-se, e que mereceu aproximar-se dele.

A inspiração vem indiferentemente de dia, de noite, em vigília e durante o sono. Apenas exige recolhimento. É-lhe preciso encontrar naturezas que possam abstrair-se de toda preocupação do mundo real, para dar lugar livre e vago ao ser que vier envolvêlo todo e lhe infundir seus pensamentos.

Nas horas de inspiração, o homem se torna muito mais acessível a todos os ruídos exteriores, e tudo o que vem do mundo real o perturba. Não mais está neste mundo, está num meio transitório, entre este e o outro, visto estar, de certo modo, impregnado da pessoa moral e intelectual de um ser elevado a uma outra esfera e que, no entanto, seu corpo se prende a este.

Embora se dirija a todos, a inspiração descerá mais especialmente sobre as naturezas doentias ou consumidas por uma sucessão de sofrimentos, materiais ou morais. Já que é um benefício, não é justo que os que sofrem sejam mais facilmente aptos a recebê-la?

A alucinação é um estado doentio, que o magnetismo pode modificar de maneira salutar. A inspiração é uma assimilação moral que se deve evitar provocar por passes magnéticos. O alucinado se entrega de bom grado a arroubos e a contorções ridículas. O inspirado é calmo.

Os inspirados são melancólicos. Necessitam ser refletidos; para ser alegre não há que refletir muito; é preciso gozar, na sua saúde, de um equilíbrio que nem sempre possuem. Mas não vamos pensar que sejam difíceis e fantasiosos. Ao contrário, mostram-se dóceis e acessíveis com aqueles a quem amam.

Há inspirados de vários graus. Uns vêm dizer-vos coisas palpáveis, fatos de segunda vista, para que se possa constatar a realidade da iniciação. Outros, mais clarividentes e pouco preocupados com os procedimentos materiais, cujos segredos não são chamados a divulgar, repetem, como lhes vêm, os pensamentos trazidos por Espíritos de progresso. Os primeiros curam o corpo, os segundos são os médicos da alma.

A missão dos mais modestos limita-se a revelar como essas coisas lhes vêm. É um fato constatado que forças adiantadas de muitos graus vêm sobre nós, para nos dominar e nos inspirar. Para que o repetir? Acredite quem quiser. Mas sendo bem estabelecidas as constatações, não se deve tomar dos inspirados senão o lado útil e sério. Pouco importa, se as idéias são boas, de que fonte provêm.

Eug. Bonnemère
R.E. , fevereiro de 1868, p. 57